Blue Velvet: Um filme sobre sensações

Muito bem, amigos do Estante! Demorou mas aqui está: mais uma crítica para você se deleitar. Assistam ao filme indicado e, sem seguida, leiam esta publicação a fim de expandir um pouco mais sua mente. A crítica fora elaborada carinhosa e meticulosamente. Não pude deixar de escrever sobre esta obra de David Lynch.


Ficha técnica

No elenco - Kyle MacLachlan (Jeffrey Beaumont), Laura Dern (Sandy Williams), Dennis Hopper (Frank) e Isabella Rossellini (Dorothy Vallens)

Gênero - Suspense / Drama

Diretor - David Lynch

Lançamento - 1986

Sinopse - O jovem Jeffrey retorna ao seu antigo lar após seu pai sofrer um mau estar súbito, e após sair da visita no hospital ele encontra uma orelha humana decepada. Jeffrey leva o órgão até a polícia, mas sente-se insatisfeito com a burocracia da investigação e, com a ajuda de uma jovem chamada Sandy, decide fazer uma investigação paralela.

Sinestesia

O ser humano possui 5 sentidos fundamentais e 2 extra-sensoriais. São eles: olfato, tato, audição, visão e paladar - e também a espiritualidade e a sinestesia. Estas duas últimas são as que se enquadram no extra-sensorial.

Após o prólogo do filme, que nos mostra uma vizinhança tranquila e pacífica, o verdadeiro início dele começa quando Jeffrey encontra uma orelha decepada - a audição. A trilha sonora também auxilia na construção deste sentido. O mesmo Jeffrey explora o paladar a partir do momento que experimenta o amor de diferentes mulheres ao longo do filme. Um de seus amores, Sandy, se inflama a partir da visão - o carro vermelho de Jeffrey é o convite para a aventura, como um tecido vermelho que inflama e provoca a um touro. O tato está no título do filme - e no roupão de Dorothy, de veludo - e o olfato, o sentido mais difícil de se explorar no cinema, enfeita a casa dos Beaumont com flores.


Cada personagem de um filme possui ao menos 1 objetivo, e ele está atrelado intrinsecamente à sua espiritualidade. Jeffrey deseja solucionar o crime; Sandy deseja ser amada e admirada; Dorothy deseja a companhia de seu filho, sequestrado. Porém o sinestésico faz o contraponto na psique de cada um deles. Isso se deve ao momento em que a moral de cada personagem é colocada à prova e é distorcida, de acordo com a expectativa que inicialmente criamos. Eles extraem os resultados com jugos que arranham nossa primeira vista e, assim, nos questionamos quem de fato eles são.

Lynch trabalha nossos sentidos de maneira quase imperceptível, ao menos aos olhos desatentos. Repare na cena em que Jeffey leva a orelha decepada à delegacia. Ele chega na sala do oficial Williams e olha para o lado esquerdo - o lado afetivo, onde a memória está guardada, pois há muito ele não visita a pequena cidade. Já mais para a resolução da trama, Jeffrey volta à delegacia procurando Williams, mas se depara com Gordon - o corrupto. O policial se encontra do lado direito da mesma sala, representando o lado sinestésico - lúdico, tanto que Jeffrey procura ludibriar este momento fingindo beber água, ao tentar reparar se aquele homem é o mesmo que fotografou junto de Frank, o traficante de drogas.


Frank, o oponente de Jeffrey, deseja destruir a vida de Dorothy, e consequentemente de Jeffrey também, pois vê que ambos estão envolvidos emocionalmente. O oponente do protagonista é morto com um tiro na cabeça, pois o desligamento de seu cérebro foi fundamental para fechar com chave de ouro - podia ser um atropelamento por carro ou trem, tiro no coração, enforcamento, mas o tiro na cabeça teve uma representatividade maior no que tange os sentidos humanos - seu receptor, distribuidor, mas que no caso de Frank tinha a empatia inibida. Era um psicopata. Tanto que ele simula sentimentos que o cérebro dele inibe, o caracterizando como tal.


Estética noir

Por volta dos anos 30 e 40, o cinema norte-americano estava dando passos largos no que entendemos como "industrialização dos filmes". Isso se deve à Segunda Guerra Mundial, onde a França foi um dos primeiros países a trabalharem o setor audiovisual, mas isso foi interrompido devido à invasão nazista no país. Então, com o cinema estacionado, a França viu os Estados Unidos ultrapassarem e com folga.

Neste período de guerra, onde os homens estavam no combate, as mulheres precisavam se virar. Muitas delas eram verdadeiras gatunas e golpistas, e isso foi retratado em vários filmes policiais como "Out of the Past (Fuga do Passado)". Nesta mesma temática a polícia estava fragilizada, com policiais sendo mal pagos e a lei-seca vigorando com mão de ferro, muitos detetives particulares faziam o trabalho que o policial comum não fazia.

Out of the Past, 1947 (Kathie Moffat e Robert Mitchum)

Por não ser policial, o detetive particular se utiliza de métodos questionáveis como espionagem, tortura e interrogatório. Temos aí os elementos de um film noir, designação tardia dada por um crítico francês e que culminou em um agrupamento de filmes com várias características em comum - mesmo que não intencionalmente.

Os elementos presentes em Blue Velvet nos leva a um filme com a estética noir, propositalmente feita por Lynch. Há certas tramas que exigem determinada narrativa. David acertou em cheio.

Dénouement

A estrutura de um filme pode se basear na Estrutura Clássica Aristotélica ou na Pirâmide de Freytag. No caso, adotaremos a segunda opção.

No filme há momentos de ação emergente, clímax, mas é no dénouement - "resolução", em francês (lê-se dê-no-mon) - que todas as pontas são resolvidas. Em outras palavras, o derradeiro momento do longa-metragem; seu final; o que ocorre após os problemas serem solucionados. Tudo isso é colocado pelo diretor através de uma sensação generalizada: a do retorno da serenidade, presente na abertura do filme. Tudo é mostrado em slow motion, caracterizando que a pressa não é presente na vida daquelas pessoas, naquele exato instante. A orelha do final do filme é diferente da que vimos no início, pois esta está ativa, vívida, ligada ao receptor e distribuidor sensorial do corpo humano. É o sentido mais próximo do nosso cérebro. O protagonista estava ainda em repouso quando é desperto por Sandy. Ela o chama para observar o tordo à sua janela - um pequeno pássaro que simboliza a tranquilidade e calmaria. E ao som de Mysteries of Love, fecham-se as cortinas. Aplausos. Você assistiu a um ótimo filme.

Abraços,

Kike