Solaris - Um ensaio sobre projeção da realidade e o encontro com o divino

 Muito bem, meus amigos! Estamos aí para mais uma crítica no blog. O filme de hoje? Solaris, de Andrei Tarkovsky. Então, prepare-se!


Ficha técnica

Diretor - Andrei Tarkovsky

Elenco - Donatas Banjonis (Kris Kelvin), Vladislav Dvorzhet (Burton), Natalja Bondartschuk (Hari)

Gênero - Ficção científica

Lançamento - 1972

Sinopse - Kris Kelvin é psicólogo e enfrenta 10 anos de luto após a morte de sua esposa. Neste meio tempo, uma estação espacial localizada no planeta oceânico Solaris está prestes a encerrar atividades. Kris é enviado para a estação a fim de realizar um relatório sobre a missão, ao passo que luta contra a inconsistência da mente humana frente ao desconhecido.

Tarkovsky esculpindo o tempo

Andrei Tarkovsky foi um cineasta autêntico. Um tanto inseguro? Às vezes. Ele recebia muitos comentários maldosos a respeito de seus filmes, inclusive relata ter lido uma espécie de nota de repúdio do próprio sindicato do cinema soviético após o filme "O Espelho". Mas que cineasta é cineasta, cujo filme não incomoda o expectador? 

Em suas obras, Tarkovsky abordou a inquietação da alma concomitantemente com o silêncio espúrio dos mundos que tecia. Ele fez o vazio nos agitar e, uma vez agitados, nos incomodamos. Mas com o quê, exatamente? Possivelmente com questões metafísicas complexas para mentes pequenas, e o que assistimos na tela do cinema é regurgitado em formato insolente, atrevido e de desagradável tato. O vilipêndio é do próprio consumidor, que, assim, admite sua ignorância e a abraça quando desiste do filme -  ao invés de rejeitá-la.


Por anos o diretor ponderou sobre escrever um livro. Seus filmes levavam um intervalo longo demais entre um lançamento e outro - chamado pelo próprio Tarkovsky de "falta do que fazer" - e decidiu de uma vez criar um material que substituiria sua experiência cotidiana. Pelo menos esta foi a alternativa que Andrei considerou, a de aprender errando, mas sua decisão de escrever se mostrou um acerto. As cartas dos fãs sem dúvida foram o catalisador para que o livro "Esculpir o Tempo" existisse e estivesse até os dias atuais nas prateleiras.

E era exatamente isso que Tarkovsky fazia em seus filmes: esculpia o tempo como um artesão.

Metáfora sobre o encontro do homem com o divino

Solaris é a anti-matéria de 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. Enquanto a obra prima de Stanley é uma ópera, Solaris é um poema redigido em papel velho cujo conteúdo conota a vivência de uma alma amargurada. À princípio, sabemos que Solaris é um planeta de superfície oceânica e que, estranhamente, se comporta como um organismo vivo. Sendo a água a superfície da vida - fluida - e o abastado nevoeiro é a semiótica de como a mente humana enxerga, turvo e fragmentado, o mundo e a vida.


Inclusive um comentário de um dos cientistas torna explícito esta relação, onde ele diz "todo o esforço dedicado só levou à fatos isolados, de difícil compreensão. Nossas sondas estão onde começaram, não conseguimos avançar." É como desvendar o divino, tentar compreender Deus. É exatamente o que Kris Kelvin faz na história de sua vida: ele tenta desvendar algo de difícil descrição, e falha, relutante. Kris vê sua aventura se perder nos desvios que sua memória toma, sem que ele controle. E aí está a metáfora de sobrevoar um planeta oceânico cuja neblina espessa e pegajosa permite pouca ou zero visibilidade.

A mente humana "on stage"

Não se engane, este é, sim, mais um ensaio sobre a mente humana. Ela, assim como nossa moral, é falha - e o filme explora isso descaradamente. A construção do protagonista ao longo do tempo, deixa claro que ele é um personagem desatento. De vista nebulosa, pouco perspicaz. 

O personagem Burton contrasta com Kris: Burton tem olhar vívido, detalhado e consciente. Ele é piloto de helicóptero e sua aeronave sobrevoou o oceano de Solaris, e uma vez lá, Burton teve experiências indescritíveis pois lhe faltou linguagem suficiente para tal. Já Kris é imaginativo, de perder a vista no movimento do lago que, de maneira metafórica deixa sua mente viajar pela natureza do seu interior. Momentos adiante, descobrimos o luto de Kris. O presente não é onde o protagonista gostaria de estar.

A missão do personagem é objetiva: Kris deve viajar até a estação espacial de Solaris e fazer um relatório sobre a missão. Este fato será derradeiro para ora encerrar as atividades da estação, ora dar continuidade à elas caso algo novo seja descoberto. Agora gostaria de compartilhar um diálogo interessante entre as duas personagens:

  • Burton - Conhecimento só vale se reside em fundamentos de moralidade.
  • Kris - O homem é o único a gente que faz da ciência algo imoral...
  • Burton - Então, não torne a ciência imoral!

Percebem como Burton e Kris contrastam? O piloto é sólido no que vê até para descrever o incompreensível. Já Kris mergulha no desconhecido e deixa sua percepção lhe conduzir. A dualidade, aqui, se apresenta como uma fragilidade do homem. E não se resume apenas ao caráter, mas como também aborda nossa memória. Kris luta contra seu superego e cede, pois sua mente enraizada é como o musgo no fundo do lago, que flui virtualmente. Este é o momento onde fica explícito a diferença entre realidade e projeção de realidade pela metafísica.

Em dado momento Kris começa a ter alucinações como lhe avisaram. Ele vê o filho de um amigo; ele vê ilhas emergindo do oceano de Solaris e, o mais importante de todos, ele vê sua esposa. Ele a beija, a toca, dialoga com ela e finalmente sua inquieta alma se desafoga, após imersa em anos de angústia. Brilhantemente Tarkovsky explora a turva memória de Kris ao colocar Hari, esposa de Kris, em duas diferentes representações: como fotografia, sua imagem original, e como alucinação - mais bela e voluptuosa, diferente da fotografia mas que representa como o personagem a enxergava.

Se o longa começa com uma porção de água em meio à terra, seu final se apresenta justamente com o oposto. É neste momento que Kris cai em si e percebe como sua mente é frágil, terminando o filme abraçado com seu velho pai.

Considerações finais

Creio que duas perguntas sugerem o entendimento do filme: 1) como seria o homem indo ao encontro de Deus? 2) qual é o limiar de nossa mente frente a tal encontro? Tarkovsky foi brilhante em Solaris. Explorou a intrínseca amargura humana, as saudades, o sentimento reprimido que, de repente, se vê solto de amarras mas acaba fluindo irregularmente, pois não é possível enxergar adiante. E toda esta exploração é feita em um ambiente impossível de prever o próximo passo, pois há uma neblina que limita nossa visão. Essa dinâmica é a perfeita descrição do comportamento dos nossos pensamentos, uma brilhante arte esculpida de algo subjetivo.

Encerramos por aqui. Espero que tenha gostado.

Abraços,
DeBritto